quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O MIOLO DA HISTÓRIA Por Igor Nascimento



            É bom presenciar a concepção e o produto final de um espetáculo, sobretudo, quando não foi feito para fins empresariais, ou para a conclusão de uma disciplina, o que embota o processo e limita a possibilidade de trabalho com diversas linguagens. Na peça O Miolo da História vemos que, além dos elementos teatrais, como cenário, luz, corpo, texto, etc., o prisma da autoria é irradiado a todo instante durante os, aproximadamente, quarenta e cinco minutos da mistura de drama, pantomima, ritualismo, poesia, música, tendo como fim, quando as luzes se acedem e o corpo se põe em movimento, expor o teatro em seus múltiplos ângulos e traços, aqui esculpidos por Lauande Aires neste processo que perdurou desde de janeiro deste ano de 2010.
             A linguagem utilizada pelo autor/ator, que enraíza o linguajar simples e popular, a clareza das ideias alinhada a endossada consistência crítica do texto, possibilita o entendimento ao público, assim como,  a apreciação dos versos, das línguas e belos axiomas tais como (parafraseio) “Tratamento de pobre é assim, quando não dá jeito, dá fim”. Temos um enredo simples, linear, que é a história de João, que quer ser cantador, mas é o miolo do boi, importante para brincadeira, mas não é visto e reconhecido pelos demais, este cidadão simples, ajudante de pedreiro, quer ser a figura mais importante do boi, desejo este que é logo descartado pelo chefe da brincadeira. Frustrado, ele abre mão ser o miolo, mas, num acidente, fura o pé e periga perdê-lo por falta de tratamento adequado. Este é clímax da história, pois, a realidade social, carrasco dos pobres, se impõe ao homem simples, este, apela para fé, para São Pedro, fazendo-lhe uma promessa de nunca parar de dançar. O pé é curado, e o boizinho, volta a girar nos terreiros da vida e da brincadeira tradicional.
            Aqui o autor, deixamos um pouco de lado o ator, expõe dois olhares sob a brincadeira, o primeiro, severo e crítico, fala sobre a sociedade, o trabalho duro e desumano, além disso, o espetáculo do auto do boi tendo que ser vendido e subordinado à políticos, exemplarmente colocado na figura do cantador, imitado pelo próprio João. O outro, fala de um aspecto esquecido e negligenciado da brincadeira, hoje, de ser tida mais como atração turística, se esquece que nasceu da religião, do ritual, da pantomima, e não de grupos, ensaiados e coreografados, com brincantes esculpidos, às vezes, em academias. Esquecem que o brincante não é um ator, esquecem que o espetáculo do boi não é uma simples e acertada apresentação. Nesse ponto, o ambicioso João, que quer ser cantador, machuca gravemente o pé e roga para São Pedro uma cura. A figura do brincante aparece, a tradição aliada a fé se unem na promessa que o miolo faz.
            Quanto à encenação, divido-a em dois pontos de vista distintos, mas análogos: a parte da técnica e a parte poética. Primeiramente, faltou ao ator ou uma voz mais forte, ou um microfone de lapela ou headset, pois muitas partes do texto ficaram obscuras, já que não era possível escutar claramente, além disso, havia algumas partes, sobretudo as que empregavam rima, que eram faladas muito rapidamente, perdendo seu sentido em função do ritmo e da prosódia. Constatei, na mascara que o ator utiliza para interpretar o trabalhador, que se constitui de olhos bem espremidos, quase fechados e a voz um pouco mais aguda, que talvez visem denotar alguma ingenuidade do ajudante de pedreiro, traços bem semelhantes a outros personagens já incorporados pelo ator, como o do Besouro e Gafanhoto, que usam da mesma partitura, embora esta não seja utilizada a todo instante no monólogo O Miolo da História.  Fora isto, Lauande Aires, consegue reproduzir com perfeição os passos típicos da brincadeira, como os do caboclo de pena e do próprio miolo, o que sugere um excelente trabalho corporal. Além disso, estes passos de dança eram encaixados não só quando o  texto  exigia  a música. Ao decorrer das falas, dos gestos do pedreiro, a figura do brincante emergia com o ritmo marcado e característicos do bumba-meu-boi.
            A poética do cenário que mistura os instrumentos do bumba meu boi com as ferramentas da construção, se alinham, concatenam-se, e dão ao espetáculo um dinamismo surpreendente. Elementos da música, como um tamborim, viram um prato de comida, uma colher de pedreiro, vira uma colher de sopa, a escada, funciona como uma casa, latas de tinta se transfiguram em baldes e praticantes, duas peneiras de areia, juntamente com uma pá, montam uma bicicleta. O cenário não é inerte à cena, ele faz parte do jogo, ele transcende o sentido singular e constrói a cena. A poesia, já presente no texto e nas músicas gravadas e melodiadas pelo próprio ator, autor, compositor e músico, se confirmam com o deslocamento do significado dos objetos utilizados. Reafirmam o drama. Inserem-se dentro do contexto do espetáculo. Ressalto a cena final, na qual a escada da construção civil, um carro de mão, e um pandeirão pendurado na vara de cenário, sugerem a escadaria da Igreja do Largo de São Pedro, os pagadores de promessas que sobem de joelhos os degraus da igreja todos anos, demonstrando fé e resistência que sobressaem a condição física, para alcançar o plano da transcendência.
            Desta forma, Lauande Aires busca, através do teatro, uma forma de retratar a realidade por detrás do produto acabado e erguido, os bastidores do brincante e do trabalhador. O miolo do boi, da história, do brincante, do ajudante de pedreiro, do homem humilde e rústico, do ser humano que sofre, que brinca, que crer, o miolo da sociedade que carrega baldes e mais baldes de concreto, que constrói com seu suor edifícios altíssimos, todavia, permanece nos escombros desta sociedade desigual e impiedosa. Estes pés escondidos por debaixo de um boizinho enfeitado e alegre, que esconde mãos calejadas e um rosto sugado pelo cansaço, se movem, não só na brincadeira, mas no dia-a-dia das grandes cidades.
            Portanto, O Miolo da História surge como um espetáculo original, autoral e dinâmico. Desperta o senso crítico, provoca questionamentos e, além disso, se faz belo e agradável ao expectador.   
Igor Nascimento
Formado em Letras pela Universidade Federal do Maranhão. Como escritor, ganhou o Prêmio Plano Editorial Gonçalves Dias 2007, em 1º Lugar em Teatro, com “Assassinato de Charllenne”, em 3º Lugar em Engenho e Arte, com “As três estações da Loucura”. Foi dramaturgo e diretor da montagem DE ASSALTO. Atualmente é professor de literatura portuguesa e francesa, e concorre em festivais de literatura: contos, teatro e romance, por todo Brasil e por países francófonos.  

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Santa Ignorância estreia "O miolo da Estória"



SINOPSE
O Miolo da Estória, de Lauande Aires, traz à cena a vida e os sonhos de João Miolo, operário da construção civil e  brincante de bumba meu boi, que tem uma vida comum a tantos outros operários: casa humilde, vida sofrida e uma enorme solidão. Mas em meio a tudo isso, João sustenta o desejo de ainda vir ser cantador no boi em que brinca e ocupar uma posição de destaque na vida.
O espetáculo apresenta o homem em conflito com a fé e suas relações sociais.

Serviço:
Estreia- 18 de setembro 2010
Local: Teatro Alcione Nazaré
Hora: 20h
Valor ingresso: R$ 10,00

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia, direção, atuação, músicas e cenografia: Lauande Aires
Iluminação: Eliomar Cardoso e Jarrão
Operação de sonoplastia: Lesly Thaís e João Victor Sales
Fotos: Ayrton Valle
Arte Gráfica: Manoel Freitas
Treinamento de brincante: Leonel Alves
Produção e realização: Santa Ignorância Cia. de Artes
Consultoria Artistica: Antônio Freire, Leonel Alves, Manoel Freitas e César Boaes

Lauande Aires                                          
lauandeaires@yahoo.com.br                                          César Boaes
3253-2122   / 9621 - 4934                                   cesarboaes@hotmail.com
                                                                     8729 – 1239  /  9962 9101 /  3235 1881

Um corpo frágil

Meus queridos amigos e curiosos,
estou bastante atarefado com o processo de estreia de O miolo da estória que será realizado sábado dia 18 de setembro no teatro Alcione Nazareth. Por conta disso resolvi compartilhar este cordel, fruto de estudos na Universidade Federal do Maranhão, como nosso contato inicial. Até breve!!


UM CORPO FRÁGIL

Para quem não me conhece
Deixa eu me apresentar
Trinta e um aniversários
E cem por comemorar
Mas só se tiver saúde
Pois caso o futuro mude
Peço a Deus pra me levar


Entre os sonhos que já tive
Alguns posso destacar:
Quis ser médico, ser padre
Vôlley sempre quis jogar
Fui até do hip-hop
Mas o que me deu ibop
Foi poder representar

Depois de alguns casamentos
Três filhinhos pra criar
Morador do coroadinho
Não me envergonho em falar
Estudei na liberdade
E depois de certa idade
Passei no vestibular!

Depois de tanta loucura
Outra iria escolher
Teatro licenciatura
Pra melhor me conhecer
Até parece piada
Depois de tanta paulada
Ainda sentir prazer

Já que o prazer se estimula
Por via sensorial
Falarei da aventura
Da expressão corporal
Sessenta horas de dor
De calor e de rigor
Prazer em baixo do pau.






Desde o primeiro encontro
Com Tânia, a professora
Numa manhã de quarta
Em plena copiadora
Suspeitei de uma surpresa:
Que por baixo da frieza
Podia vir coisa boa.

Se eu pudesse descrever
Um instante do acontecer
Certamente um livro grande
Haveria de escrever
Mas a escrita representa
Muito pouco do sistema
E é bem melhor perceber.

Se for verdade que a fala
Diz muito pouco do fato
Transformando um espetáculo
Em algo simplificado
É melhor ler o Gaiarsa
Pra entender a couraça
Do corpo desfigurado.

José Ângelo pergunta
De forma bem transparente
Você não vive num corpo
Desde que se entende por gente?
E mergulhei nas entranhas
Do corpo que me acompanha
Com uma alma presente.

Ou será que é diferente,
Um vale mais que o outro?
É bem longa a tradição
Negativa contra o corpo
Por dentro não se conhece
Por fora então se padece
E o povo fica mais louco.

O desmazelo é antigo
Isso devemos lembrar
Mesmo o homem da caverna
Já vivia a se negar
De tudo representava
Mas quase não se lembrava
De a si mesmo desenhar



Esses povos primitivos
Tão cansados de andar
Descobriram que a comida
Também podiam guardar
Grande tecnologia
Mas pouca foi a alegria:
Começaram a escravizar!

Desde então criou-se a tese
Que hoje ainda se sustenta
Que a mente é superior
Que o corpo é só ferramenta
Só serve para abrigar
A alma que vem deitar
Numa cama fedorenta.

A alma uma coisa limpa
O corpo cheio de merda
A alma nunca se finda
O corpo sempre se estrepa
A alma desesperada
Afirma angustiada
Dizendo: o corpo é quem peca!

Para que a linda alma
Não viesse a ser queimada
Ataram o terrível corpo
Só permitiram a palavra
E essa antes de ser dita,
Rabiscada ou escrita
Deverá sem bem pensada.


E o verbo se fez carne
E habitou entre nós
Tantos nós deram no corpo
Que a coitada da voz
Saia toda embargada
Espremida e machucada
Com a atitude atroz.

Se bem antes da palavra
Já sabíamos dizer
Quando esta foi criada
Usamos para esconder
Num jogo de disfarçar
A alma tenta aflorar
O corpo tenta prender.

O contrário desse jogo
É bem fácil de notar
A alma quer reprimir
O corpo quer se jogar
A alma uma moça casta
O corpo uma moça gasta
Nadando nua no mar.

É dessa dicotomia
Que mais parece novela
Nascida da agonia
Criada em um corpo tela
Que a alma dissimulada
Mesmo estando maquiada
O seu intimo revela.

Nosso controle é precário
Sobre as ações reprimidas
Quase nunca percebemos
Que damos escapulidas
Se fômos feito de um sopro
Está contido no corpo
Uma grande ventania.

Não cuidamos do olhar
Nem do gesto, nem de nada
O corpo, em geral, difere
Da palavra articulada
Gaiarsa se apóia em Reich
E tenta fazer um encaixe
Pra dar uma equilibrada.

Reich entende que o corpo
Fala tal qual a palavra
Considera-o um todo
Com sons, gestos e cara
Passa a significar
Os por menores mostrar
A ser mais do que couraça.

Por aprendemos bem cedo
A arte de imitar
Talvez, por esse segredo,
Não consiga observar
A ter um olhar em si
A perceber e sentir
Preocupado em mostrar.



Jung diz que o inconsciente
É uma compensação
Funciona complementando
A nossa percepção
Piaget vem afirmar
Conhecer é comparar
Circunstancia e educação.

Ainda que acreditemos
Que pra outros fomos feitos
Gaiarsa quer que pensemos
Num desgraçado conceito:
Ninguém entende ninguém
Quando um vai, outro vem
Instala-se o preconceito.

Na mente da maioria
Parece em fim dominar
Que viver em sociedade
Implica uniformizar
A todo comportamento
E é esse sofrimento
Que vive a nos retalhar.

Sentimos-nos coagidos
Com nossas inclinações
Todas elas em conflito
Com as nossas tradições
E entre ser ou não ser
É melhor não ser que ser
Submetido à sanções.

E Gaiarsa novamente
Pergunta e incomoda:
Diante do que foi visto,
Intimo é dentro ou fora?
Nós somos uma cantiga
Que precisa ser ouvida
Para não sair de moda.

Alma/ letra comunica
Processo intelectual
Corpo/musica inspira
O processo emocional
É preciso paciência
Pra tomar a consciência
Da expressão não verbal



Temos custado a entender
Corpo e alma como avessos
Nem mais nem menos que isso
Juntinhos desde o começo
Um casal de enamorados
Que não vivem separados
Em tudo sendo parceiros

Separar corpo e alma
É como uma maldição
Mantida através da força
De atração e repulsão
No processo de amar
É necessário aceitar
Pra que haja comunhão.

Um corpo frágil aparece
Em meio a uma fortaleza
De músculos contraídos
Pra mascarar a fraqueza
De nossas vicissitudes
Desejos e atitudes
Que agente quer que não cresça.

O corpo despedaçado
Haverá de se juntar
Em corpo e alma de novo
Pra que possa se salvar
Salvar-se de uma dormência
E tenha mais consciência
Para se comunicar.

O corpo do outro parece
Um espelho refletido
Revelador das mazelas
Do meu corpo constrangido
Diante dessa carcaça
Só resta-me achar graça
De ainda ter sobrevivido.

Lauande Aires
Baseado nas obras O que é corpo ? e  Um espelho mágico de José Ângelo Gaiarsa