É bom presenciar a concepção e o produto final de um espetáculo, sobretudo, quando não foi feito para fins empresariais, ou para a conclusão de uma disciplina, o que embota o processo e limita a possibilidade de trabalho com diversas linguagens. Na peça O Miolo da História vemos que, além dos elementos teatrais, como cenário, luz, corpo, texto, etc., o prisma da autoria é irradiado a todo instante durante os, aproximadamente, quarenta e cinco minutos da mistura de drama, pantomima, ritualismo, poesia, música, tendo como fim, quando as luzes se acedem e o corpo se põe em movimento, expor o teatro em seus múltiplos ângulos e traços, aqui esculpidos por Lauande Aires neste processo que perdurou desde de janeiro deste ano de 2010.
A linguagem utilizada pelo autor/ator, que enraíza o linguajar simples e popular, a clareza das ideias alinhada a endossada consistência crítica do texto, possibilita o entendimento ao público, assim como, a apreciação dos versos, das línguas e belos axiomas tais como (parafraseio) “Tratamento de pobre é assim, quando não dá jeito, dá fim”. Temos um enredo simples, linear, que é a história de João, que quer ser cantador, mas é o miolo do boi, importante para brincadeira, mas não é visto e reconhecido pelos demais, este cidadão simples, ajudante de pedreiro, quer ser a figura mais importante do boi, desejo este que é logo descartado pelo chefe da brincadeira. Frustrado, ele abre mão ser o miolo, mas, num acidente, fura o pé e periga perdê-lo por falta de tratamento adequado. Este é clímax da história, pois, a realidade social, carrasco dos pobres, se impõe ao homem simples, este, apela para fé, para São Pedro, fazendo-lhe uma promessa de nunca parar de dançar. O pé é curado, e o boizinho, volta a girar nos terreiros da vida e da brincadeira tradicional.
Aqui o autor, deixamos um pouco de lado o ator, expõe dois olhares sob a brincadeira, o primeiro, severo e crítico, fala sobre a sociedade, o trabalho duro e desumano, além disso, o espetáculo do auto do boi tendo que ser vendido e subordinado à políticos, exemplarmente colocado na figura do cantador, imitado pelo próprio João. O outro, fala de um aspecto esquecido e negligenciado da brincadeira, hoje, de ser tida mais como atração turística, se esquece que nasceu da religião, do ritual, da pantomima, e não de grupos, ensaiados e coreografados, com brincantes esculpidos, às vezes, em academias. Esquecem que o brincante não é um ator, esquecem que o espetáculo do boi não é uma simples e acertada apresentação. Nesse ponto, o ambicioso João, que quer ser cantador, machuca gravemente o pé e roga para São Pedro uma cura. A figura do brincante aparece, a tradição aliada a fé se unem na promessa que o miolo faz.
Quanto à encenação, divido-a em dois pontos de vista distintos, mas análogos: a parte da técnica e a parte poética. Primeiramente, faltou ao ator ou uma voz mais forte, ou um microfone de lapela ou headset, pois muitas partes do texto ficaram obscuras, já que não era possível escutar claramente, além disso, havia algumas partes, sobretudo as que empregavam rima, que eram faladas muito rapidamente, perdendo seu sentido em função do ritmo e da prosódia. Constatei, na mascara que o ator utiliza para interpretar o trabalhador, que se constitui de olhos bem espremidos, quase fechados e a voz um pouco mais aguda, que talvez visem denotar alguma ingenuidade do ajudante de pedreiro, traços bem semelhantes a outros personagens já incorporados pelo ator, como o do Besouro e Gafanhoto, que usam da mesma partitura, embora esta não seja utilizada a todo instante no monólogo O Miolo da História. Fora isto, Lauande Aires, consegue reproduzir com perfeição os passos típicos da brincadeira, como os do caboclo de pena e do próprio miolo, o que sugere um excelente trabalho corporal. Além disso, estes passos de dança eram encaixados não só quando o texto exigia a música. Ao decorrer das falas, dos gestos do pedreiro, a figura do brincante emergia com o ritmo marcado e característicos do bumba-meu-boi.
A poética do cenário que mistura os instrumentos do bumba meu boi com as ferramentas da construção, se alinham, concatenam-se, e dão ao espetáculo um dinamismo surpreendente. Elementos da música, como um tamborim, viram um prato de comida, uma colher de pedreiro, vira uma colher de sopa, a escada, funciona como uma casa, latas de tinta se transfiguram em baldes e praticantes, duas peneiras de areia, juntamente com uma pá, montam uma bicicleta. O cenário não é inerte à cena, ele faz parte do jogo, ele transcende o sentido singular e constrói a cena. A poesia, já presente no texto e nas músicas gravadas e melodiadas pelo próprio ator, autor, compositor e músico, se confirmam com o deslocamento do significado dos objetos utilizados. Reafirmam o drama. Inserem-se dentro do contexto do espetáculo. Ressalto a cena final, na qual a escada da construção civil, um carro de mão, e um pandeirão pendurado na vara de cenário, sugerem a escadaria da Igreja do Largo de São Pedro, os pagadores de promessas que sobem de joelhos os degraus da igreja todos anos, demonstrando fé e resistência que sobressaem a condição física, para alcançar o plano da transcendência.
Desta forma, Lauande Aires busca, através do teatro, uma forma de retratar a realidade por detrás do produto acabado e erguido, os bastidores do brincante e do trabalhador. O miolo do boi, da história, do brincante, do ajudante de pedreiro, do homem humilde e rústico, do ser humano que sofre, que brinca, que crer, o miolo da sociedade que carrega baldes e mais baldes de concreto, que constrói com seu suor edifícios altíssimos, todavia, permanece nos escombros desta sociedade desigual e impiedosa. Estes pés escondidos por debaixo de um boizinho enfeitado e alegre, que esconde mãos calejadas e um rosto sugado pelo cansaço, se movem, não só na brincadeira, mas no dia-a-dia das grandes cidades.
Portanto, O Miolo da História surge como um espetáculo original, autoral e dinâmico. Desperta o senso crítico, provoca questionamentos e, além disso, se faz belo e agradável ao expectador.
Igor Nascimento
Formado em Letras pela Universidade Federal do Maranhão. Como escritor, ganhou o Prêmio Plano Editorial Gonçalves Dias 2007, em 1º Lugar em Teatro, com “Assassinato de Charllenne”, em 3º Lugar em Engenho e Arte, com “As três estações da Loucura”. Foi dramaturgo e diretor da montagem DE ASSALTO. Atualmente é professor de literatura portuguesa e francesa, e concorre em festivais de literatura: contos, teatro e romance, por todo Brasil e por países francófonos.